dois de março: em resposta a karen

eu nasci num dia de chuva. de muita chuva. hospital alagado. história repetida anualmente. história que entrava pelos meus ouvidos e atingia a parte mais bonita do meu corpo, que se transformava num lugar desconfortável. passei anos detestando que o meu dia fosse debaixo de tanta água - olha aí a falta de reconhecimento. e em algum ano eu pensei que seria necessário que eu fizesse as pazes com a chuva. ou melhor, que eu me abrisse pra ela. que eu me deixasse molhar. que eu sou filha da água. e foi nesse ano que a relação mudou. hoje, contemplo a chuva com olhos cuidadosos. ela cai do céu de graça, gratuita. que graça, emanação de deus. que graça, contemplação. nós somos nossa melhor experiência. vivemos à beira de tantas coisas. voltar ao passado também é estado de graça. é tempo dedicado. é tempo dedicado a um olhar pra si. troco um pouco e digo que o sofrimento pode ser a re-existência que nos traz a possibilidade de re-ver. afastar também é se dedicar. dedicação. dedicatória. primeiro, a graça. depois, as bençãos. ontem eu li um poema (tetris) lindo da eliza caetano. uma frase me puxou os olhos: então depois de tantas perdas é bonito dizer achei. 

diário (fim 2017)

I

assim como nós
os móveis da casa se cansaram
deviam esconder
o hábito dos risos
em vocabulários secretos
as palavras apropriadas
que não encontramos
ao longo das manhãs

II

os espaços do apartamento exigem
que sejam experimentados
pela última vez
com pisadas barulhentas
- que agora digam os objetos
já que depois que a coragem nos visitou
não temos mais voz
a escova de dentes parte para seu destino
assim como as roupas, que passam o trajeto
de uma casa para a outra
em sacolas de supermercado
o café na xícara de sempre
desce amargo como tudo o que foi dito na mesa

III

de algum modo
por leves terremotos, quem sabe,
o corpo, que também é casa,
entende a chegada do fim


IV

os termômetros não dizem nada
sobre a temperatura do corpo
de quem decide ir
embora seja possível perceber
pela tremura das mãos
que ainda há incêndios
a serem apagados
assim como algumas fotos
hábitos, cansaços, acontecimentos
os bilhetes espalhados pela porta da geladeira
logo serão retirados
um a um
como num ritual
silencioso e solitário
até que uma alegria finalmente se instale

meu aniversário
entro no elevador e um moço diz que estou com a energia boa.
agradeço.
não a ele, mas às deusas.
ele diz:
não é por nada.
sorrio por enganar.


pós-aniversário

outro dia, eu tive um sonho bonito com minha analista. eu andava por uma rua em que as casas ainda estavam sendo construídas, entrava em uma delas e de lá, mandava mensagem para marcar um horário. em seguida, com horário já marcado, eu saía dessa casa para ir ao consultório e começava a andar de novo nessa mesma rua. algo atrás de mim me chamou atenção e quando olhei, minha analista estava saindo da casa em que eu estava. olhei  pra ela como se perguntasse: te espero ou vou sozinha? e ela apontou com a cabeça como se dissesse: vai sozinha: quem constrói isso é você.  hoje, passando em frente ao consultório dela, tive vontade de descer e dizer: eu não consigo. mas olhei pra trás mais uma vez, encarei o ontem e vi o curso da vida. tanto afeto. fui longe e voltei meio trôpega delirante pra esse universo sem ordem. deu tudo certo. fiz 31 e juro - quase como uma oração: envelhecer é gostoso. 

Análise

I
perguntei pra minha analista
como a gente percebe o fim.

II
no divã,
pensando se ainda te amo.

terça

um cavalo me aparece em sonho. luz enorme, eu convoco. bravo, distante e intocável. sou eu, não você, meu amor. não se coloque aonde não te cabe, penso debochada. ela me cospe palavras reais. a poeta me arde os olhos. demoro a acreditar na vida, mas não em mim. ela duvida. quer me matar esse acúmulo no peito. digo que te amo, mas é mentira. mentira. não frequento mais nossas conversas porque elas não contêm a beleza de antes. falo sem ser ouvida. quando foi que comecei a reivindicar minha presença por meio da fala, meu deus? a partir de hoje, leio orides fontela e penso em você. o silêncio, a boca enorme.
estou no ônibus. banco alto. embaixo de mim, uma mulher lê um livro nesses trem que coloca o dedinho e passa a página. tantas coisas. percebo que é um romance romanção. começo a acompanhar a leitura, mas ela olha pela janela e passa a página. nem leu. nem eu. não deu tempo. ela olha pela janela e passa a página de novo. não deu tempo. pego as primeiras frases e crio o meu desfecho. a mulher não queria casar. pronto. estou voltando pra casa plena, mas nem tanto, depois de um almoço. já quase pra descer, vejo um cachorro arreganhado numa varanda - que delícia estar assim às quatro da tarde -, vejo uma ducha aberta com alguém sendo feliz e um moço aguando as planta. ai, a água. ai, o calor. e a única coisa que sinto é o suor escorrendo do meu sovaco. desejo atenta a noite. janela aberta. vento nos peito. que seja agradável.