diário (fim 2017)

I

assim como nós
os móveis da casa se cansaram
deviam esconder
o hábito dos risos
em vocabulários secretos
as palavras apropriadas
que não encontramos
ao longo das manhãs

II

os espaços do apartamento exigem
que sejam experimentados
pela última vez
com pisadas barulhentas
- que agora digam os objetos
já que depois que a coragem nos visitou
não temos mais voz
a escova de dentes parte para seu destino
assim como as roupas, que passam o trajeto
de uma casa para a outra
em sacolas de supermercado
o café na xícara de sempre
desce amargo como tudo o que foi dito na mesa

III

de algum modo
por leves terremotos, quem sabe,
o corpo, que também é casa,
entende a chegada do fim


IV

os termômetros não dizem nada
sobre a temperatura do corpo
de quem decide ir
embora seja possível perceber
pela tremura das mãos
que ainda há incêndios
a serem apagados
assim como algumas fotos
hábitos, cansaços, acontecimentos
os bilhetes espalhados pela porta da geladeira
logo serão retirados
um a um
como num ritual
silencioso e solitário
até que uma alegria finalmente se instale

meu aniversário
entro no elevador e um moço diz que estou com a energia boa.
agradeço.
não a ele, mas às deusas.
ele diz:
não é por nada.
sorrio por enganar.


pós-aniversário

outro dia, eu tive um sonho bonito com minha analista. eu andava por uma rua em que as casas ainda estavam sendo construídas, entrava em uma delas e de lá, mandava mensagem para marcar um horário. em seguida, com horário já marcado, eu saía dessa casa para ir ao consultório e começava a andar de novo nessa mesma rua. algo atrás de mim me chamou atenção e quando olhei, minha analista estava saindo da casa em que eu estava. olhei  pra ela como se perguntasse: te espero ou vou sozinha? e ela apontou com a cabeça como se dissesse: vai sozinha: quem constrói isso é você.  hoje, passando em frente ao consultório dela, tive vontade de descer e dizer: eu não consigo. mas olhei pra trás mais uma vez, encarei o ontem e vi o curso da vida. tanto afeto. fui longe e voltei meio trôpega delirante pra esse universo sem ordem. deu tudo certo. fiz 31 e juro - quase como uma oração: envelhecer é gostoso. 

Análise

I
perguntei pra minha analista
como a gente percebe o fim.

II
no divã,
pensando se ainda te amo.

terça

um cavalo me aparece em sonho. luz enorme, eu convoco. bravo, distante e intocável. sou eu, não você, meu amor. não se coloque aonde não te cabe, penso debochada. ela me cospe palavras reais. a poeta me arde os olhos. demoro a acreditar na vida, mas não em mim. ela duvida. quer me matar esse acúmulo no peito. digo que te amo, mas é mentira. mentira. não frequento mais nossas conversas porque elas não contêm a beleza de antes. falo sem ser ouvida. quando foi que comecei a reivindicar minha presença por meio da fala, meu deus? a partir de hoje, leio orides fontela e penso em você. o silêncio, a boca enorme.
estou no ônibus. banco alto. embaixo de mim, uma mulher lê um livro nesses trem que coloca o dedinho e passa a página. tantas coisas. percebo que é um romance romanção. começo a acompanhar a leitura, mas ela olha pela janela e passa a página. nem leu. nem eu. não deu tempo. ela olha pela janela e passa a página de novo. não deu tempo. pego as primeiras frases e crio o meu desfecho. a mulher não queria casar. pronto. estou voltando pra casa plena, mas nem tanto, depois de um almoço. já quase pra descer, vejo um cachorro arreganhado numa varanda - que delícia estar assim às quatro da tarde -, vejo uma ducha aberta com alguém sendo feliz e um moço aguando as planta. ai, a água. ai, o calor. e a única coisa que sinto é o suor escorrendo do meu sovaco. desejo atenta a noite. janela aberta. vento nos peito. que seja agradável.
hoje tomei café da manhã na casa da minha namorada lendo "minhas queridas", livro de cartas escritas pela clarice lispector para as irmãs elisa e tânia, entre os anos de 1940 e 1957. entrar na intimidade dela é fabuloso e completamente identificável. tem um pouco de mesmice. de tempo parado. de amor. de insistência por respostas. de solidão. de sensibilidade. de humor. "essa gente toda de quem estou falando apresenta o ligeiro milagre de não ser chata, pelo contrário". risos. em novembro de 1944, ela escreveu: "você não imagina como longe do Brasil se tem saudade dele. sou capaz de escrever um novo Brasil, país do futuro..." gostaria. logo cedo estava tocadíssima por aquelas palavras. o dia, às vezes, desanda, mas quero acreditar na vida pelas manhãs. pensando nisso, trouxe o livro pra minha casa. amanhã continua. saga.

Casa

I

o desconhecido me acomodava
hoje a intimidade me apavora
me distraio e a madrugada fica enorme
seus olhos anoitecidos
não imaginam que conto
passos pela casa
do quarto, catorze até a cozinha
mais cinco até a janela
no frio,
a bolsa de água quente me abre
feridas nas pernas

II

bebemos em silêncio
o último vinho
comprado no verão passado
percebemos o amor escapando
a falta de coragem das palavras
essa noite, me peguei
dormindo igual a você

III

sempre tive medo de errar
a medida do café.


IV

perdi o isqueiro pela casa
sinto um desconforto ao andar pelos cômodos
nada mais me acolhe nesse lugar
nem mesmo as palavras
ou as velhas fotografias que tiramos
no alto da serra
abraçadas

a madrugada me desperta para os detalhes da casa
o tapete sob efeito de ondas
o barulho da tábua corrida
recebendo os pés cansados
na estante, a primeira letra do seu nome
dou ao amor o destino de uma taça
prestes a cair da beirada do poema
a vida submarina, primeiro livro da ana martins marques, tem me acompanhado essa semana. ontem, vivendo a madrugada, tudo era terror e espanto. a insônia me acompanha há meses, os versos se apresentam com certo ineditismo nessas horas. mas as pálpebras estão exaustas. o poema é um lugar desconhecido. o corpo estranha a chegada. a turbulência. esse encontro que me toca por baixo da pele. habitar as palavras é pra quem tem coragem.

toda manhã, uma tosse insistente. forte. às vezes, acho que até meu coração vai, quer sair pela boca. é que eu sempre digo: pode vir tudo, pode vir tudo que aqui cabe. um apreço incomensurável de comer o inédito. a comida, a palavra, a buceta.

pós-terapia

a energia é universal. o que muda são as vibrações. positivas & negativas. me disseram que é puro erro achar que se proteger quer dizer se blindar. tem mais a ver com se preparar. o corpo conversa o tempo todo. então, melhor bater aquele papo bom e deixar que a energia circule entre os outros. permissão. doação. saí da terapia atravessada por esses pensamentos. estou num lugar completamente novo. quero voltar daqui um tempo e ler esse deslocamento. finalmente, deixei o amor chegar. é a primeira vez que escrevo isso. que leio que escrevi isso. escrever, pra mim, é muito mais difícil do que falar. digo no sentido de que é minha comunicação mais forte. mais intensa. mais profunda. se escrevo, pá: é coisa que vem de dentro. mesmo. outro dia, chorei depois de transar. um choro confiante. lúcido. de certeza. de beleza da vida. da janela aberta. do corpo entregue. envolvido. investido. tenho escrito pouco. aliás, demorado mais para escrever. numa piração total, que talvez faça sentido ou não, não importa agora, seja porque tenho demorado mais nos sentimentos. enfim, estou aprendendo a perceber o tempo. a contemplar o ócio. a trocar a culpa pela responsabilidade. a não contar os orgasmos. a sentir mais com a pele, como eu sempre desejei a mim e aos outros. hoje, conheci uma poeta de Belém do Pará que tocou por baixo de tudo. Olga Savary. meu agora, meu tempo, meu começo.

Sempre o verão
e algum inverno
nesta cidade sem outono
e pouca primavera:

tudo isto te vê entrar
em mim todo inteiro
e eu em fogo vou bebendo
todos os teus rios

com uma insaciável sede
que te segue às estações
no dia aceso.

Em tua água sim está meu tempo,
meu começo. E depois nem poder ordenar:
te acalma, minha paixão.

Olga Savary
girei o timer do fogão sem querer. que desespero. um aviso de que não tenho muito tempo. o tempo tá curto. capaz de eu nem dar conta. capaz de eu abandonar tudo pela metade. hoje eu preciso ir à feira. comer mamão deve ser bom nessas horas. hoje eu preciso ir no terreiro. deve ser lindo morrer no terreiro. hoje eu preciso dar uns passos. preciso arrumar a casa. terminar o livro prometido. estamos vivendo o tempo do pensamento acelerado. uma amiga querida cuida de mim nesse momento. ela me contou que voa em sonho. escala paredes sem proteção. pula de abismos. tudo em sonho. fiquei na paranoia & com inveja. queria sonhar que mergulhava. que baleias não me dão medo. que eu cruzava com uma e fazia carinho. que entrava no mar e ia nadando cada vez mais fundo ao lado de peixes maravilhosos. acabei sonhando que mandava mensagem agradecendo o cuidado. fiquei na dúvida se era sonho ou não. acordei e vi que foi sonho. mas tratei logo de realizá-lo. é sempre um choque quando o afeto chega. estou num processo bonito e cuidadoso de autoconhecimento, o que me deixa em grande comoção quase o tempo inteiro. e tem o céu e o mar que provocam sérios abalos no meu sistema nervoso. ando atenciosa à temperatura das pessoas também. gosto de gente quente, que quase queima com o olhar ou com o toque. gosto muito da sacudida que dá um calor entre as pernas. mas ando maluca por um calor entre os braços.
é o susto que interrompe o choro. quinze e quarenta e sete: a chuva começa. faço todo o ritual de proteção, mas esqueci para quem se reza nessas horas. recolho as roupas do varal. tiro também os eletrônicos da tomada. eu deveria me concentrar em cuidar da casa. eu deveria me concentrar mais. eu deveria. acompanho atenta o desmoronamento do tempo. bonito o que cai do céu. de graça. passo os olhos na vida. tive um sonho bonito outro dia. raríssimo eu me lembrar, porém o sonho se repetiu essa semana: eu dançava em volta de uma lagoa com muitas mulheres. arrepios. essa noite sonhei que alguém declamava um poema pra mim. ontem foi um dia bonito. falou-se muito em pássaros.  

ontem à noitão vi estrelas além do tempo, que recomendo fortemente (habemus torrent). filme terminado, fiz mais algumas coisas pela casa e tomei aquele chá mara de baunilha, mel e não sei o quê, que a Monica me mandou. que amor. estava calma, mas nem tanto. pronta para dormir. mentira. queria, mas não conseguia. mais umas horinhas e foi. comecei a sonhar que estava indo para um planeta sapatônico. coisas do filme, mais ou menos. eu tava feliz até a parte em que abelhas que picavam somente orelhas invadiram onde eu tava. corre-corre danado. conclusão: não consegui ir embora. lágrimas. dormi pouco, pouquíssimo, essa noite. acordei com um amarelo desconhecido invadindo o quarto. aos poucos, ele ia se tornando intimo, porque tocava a pele. capaz do dia ser bom.

vinte e sete de novembro

dez é o número de vezes que a gaivota bateu as asas para alcançar o voo sublime. contei, questão de segundos. nesse tempo você pode estar acendendo seu camel na sala ou tamborilando os dedos na mesa da cozinha, enquanto espera ferver a água para o café. questão de detalhes. estou no meio de uma travessia entre o Rio e Paquetá e de repente tudo se interrompeu. tempo, essa barreira silenciosa. o rastro do seu vestido vermelho subindo pelas paredes.

vida moderna

mesmo com tantos buracos ainda me sinto presa às redes. vai só um braço ou vai só uma perna, nunca o corpo inteiro. nem rosto, só a boca que abre seguido do grito. tormento. mas, finalmente, estou aprendendo a usar o diafragma, o que é um alívio. expandir as laterais do corpo, criar espaços para o ar, para o que está por vir. suavidade: desejo. um dia me salvo


gana

sinto uma fome enorme
sou capaz de comer tudo
do teto ao chão
na escada, em cima da máquina de lavar,
na pia da cozinha, até na cama
como você
de ladinho numa manhã
que se esquenta de laranja
bem aos poucos

pra fechar, pra abrir

foi no banheiro
sob a água fria
que bati a última
siririca
de dois mil & dezesseis
sentada na sua boca
seu nome explodindo
entre meus pés