diário (fim 2017)

I

assim como nós
os móveis da casa se cansaram
deviam esconder
o hábito dos risos
em vocabulários secretos
as palavras apropriadas
que não encontramos
ao longo das manhãs

II

os espaços do apartamento exigem
que sejam experimentados
pela última vez
com pisadas barulhentas
- que agora digam os objetos
já que depois que a coragem nos visitou
não temos mais voz
a escova de dentes parte para seu destino
assim como as roupas, que passam o trajeto
de uma casa para a outra
em sacolas de supermercado
o café na xícara de sempre
desce amargo como tudo o que foi dito na mesa

III

de algum modo
por leves terremotos, quem sabe,
o corpo, que também é casa,
entende a chegada do fim


IV

os termômetros não dizem nada
sobre a temperatura do corpo
de quem decide ir
embora seja possível perceber
pela tremura das mãos
que ainda há incêndios
a serem apagados
assim como algumas fotos
hábitos, cansaços, acontecimentos
os bilhetes espalhados pela porta da geladeira
logo serão retirados
um a um
como num ritual
silencioso e solitário
até que uma alegria finalmente se instale

meu aniversário
entro no elevador e um moço diz que estou com a energia boa.
agradeço.
não a ele, mas às deusas.
ele diz:
não é por nada.
sorrio por enganar.